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Há cem anos acabava a primeira guerra mundial

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11/11/2018 – 04h48

Conflito trouxe transformações de ordem política, econômica, social e cultural

Foi em 11 de novembro de 1918 que finalmente se declarou o cessar-fogo que colocaria fim à Primeira Guerra Mundial. Cem anos depois, o mundo ainda vive sob marcas históricas do conflito que inaugurou os tanques de guerra e, consigo, trouxe transformações de ordem política, econômica, social e cultural. Enquanto a arte eternizou o caos e o trauma deixados por esta guerra, ainda é debatido o papel do multilateralismo — o princípio fundador da Liga das Nações, formada após a guerra — para a construção da paz e a estabilidade.

Vômito, asfixia e queimaduras. A partir de 1915, as armas químicas passaram a provocar um novo tipo de sofrimento para os soldados escondidos nas trincheiras. Em 22 de abril de 1915 um nuvem esverdeada pairou sobre o norte de Ypres, na Bélgica, asfixiando cerca de 5.000 soldados franceses. Os alemãs tinham acabado de liberar 168 toneladas de cloro no ar. Esse foi o começo da guerra de gases na frente ocidental.

— Com o uso de gases, as partes beligerantes pensavam que poderiam romper a estagnação militar e retomar uma guerra de movimento — explica Doran Cart, conservador do Museu Nacional da Primeira Guerra Mundial em Kansas City, nos Estados Unidos.

Cientistas e militares se lançaram em uma corrida armamentista. O cloro foi substituído pelo fosgênio, um agente mais letal, que asfixia suas vítimas várias horas depois da exposição. Mas o mais infame foi o “gás mostarda”, um líquido oleoso, que tem esse nome pela sua cor ocre. Ele foi utilizado pela primeira vez em julho de 1917 pelos alemães perto de Ypres, mas os franceses correram para fabricá-lo também.

— Conhecido como “rei dos gases de batalha”, o gás mostarda não era sempre letal, mas provocava queimaduras que requeriam longos períodos de cuidados. Também era necessário descontaminar grandes áreas depois. Seu uso atrapalhava e desacelerava tudo — diz Edward Spiers, professor de estudos estratégicos na Universidade britânica de Leeds e autor de “A History of Chemical and Biological Weapons” (“História das armas químicas e biológicas”, em tradução livre).

O gás provoca abscessos, irritação ocular severa e hemorragias pulmonares. Não precisa ser inalado para provocar os efeitos: basta o contato por roupas, couro ou borracha.”Gostaria que as pessoas que falam de continuar esta guerra a qualquer preço pudessem ver os soldados sofrendo pelo gás mostarda”, afirmava a enfermeira e escritora inglesa Vera Brittain.

Nas trincheiras, os soldados procuravam soluções. Primeiro, usaram tecidos embebidos em água ou urina, mas eles foram substituídos por máscaras anti gás. No fim, os novos venenos industrializados deixaram mais feridos que mortos. Estima-se que foram responsáveis por 90 mil mortes e mais de 1,2 milhão de feridos, de um total de 9,7 milhões de soldados mortos entre 1914 e 1918. Em 1925, o Protocolo de Genebra proibiu o uso de armas químicas nos conflitos armados, sem prever verificações ou sanções.

NOVO MAPA PARA EUROPA E ORIENTE MÉDIO

A Primeira Guerra Mundial provocou a queda dos impérios austro-húngaro, russo e otomano. E levou à criação de vários países, com mudanças que afetaram profundamente o Oriente Médio.

A guerra marcou o fim do Império Russo, que já estava enfraquecido. As numerosas derrotas, as enormes despesas militares, a fome e a fúria popular antes do banho de sangue provocado pelo conflito formaram um terreno fértil para a Revolução Bolchevique de 1917. Em março daquele ano, uma primeira revolução causou a abdicação do czar Nicolau II e a formação de um governo que controlava quase nada. Em novembro, os bolcheviques tomaram o poder, e sua primeira decisão foi propor o fim das hostilidades contra países que estavam em guerra com a Rússia. Em 3 de março de 1918, Lenin assinou a paz com a Alemanha e seus aliados em Brest-Litovsk.

O Império Austro-Húngaro, da dinastia dos Habsburgos, que dominara a Europa Central durante cinco séculos, estendia-se em 1914 da Suíça à Ucrânia e abrigava uma dúzia de nacionalidades diferentes. Mas os sentimentos nacionalistas reduziram a unidade do Império, que desmoronou depois de 1918. Em 28 de outubro, nasceu a Tchecoslováquia. No dia seguinte, os eslavos do sul criaram a Iugoslávia e, em 1º de novembro, uma insurreição eclodiu na capital húngara, Budapeste. Dois dias depois, o Império foi formalmente dissolvido durante a assinatura do armistício entre a Áustria-Hungria e os poderes vitoriosos: os Estados Unidos, a França e o Reino Unido.

A consequência do colapso dos dois impérios foi a divisão da Europa Central em vários Estados. Além da Tchecoslováquia e da Iugoslávia, a Conferência de Paris em 1919 selou o nascimento da Polônia, anteriormente dividida entre a Áustria e a Rússia, e quatro novos Estados formados a partir de territórios russos: Finlândia, Estônia, Lituânia e Letônia.A Hungria perdeu dois terços de seus territórios. A Itália recebeu parte do Tirol e “o resto”, nas palavras de Clemenceau, tornou-se a Áustria.

Dissolução do Império Otomano

Quando o sultão Mehmet V proclamou a “guerra santa” contra a França, o Reino Unido e a Rússia, em 24 de novembro de 1914, o Império Otomano já havia perdido a maioria de suas possessões europeias. Os contratempos sofridos desde 1915 na frente russa foram um pretexto para atacar a minoria armênia. Segundo estimativas, entre 1,2 e 1,5 milhão de armênios morreram durante a guerra. A Turquia nega a existência de um genocídio contra eles — embora cerca de 30 países e a maioria dos historiadores o reconheçam —, mas admite que os massacres e a fome ceifaram as vidas de entre 300 mil e 500 mil armênios e turcos.

A derrota das tropas otomanas em 1918 pôs fim ao Império. Os nacionalistas turcos, reunidos em torno do general Mustafa Kemal Atatürk, rejeitaram um primeiro tratado assinado em 1920, continuaram a luta contra os armênios, os gregos e os franceses e derrubaram o sultão. A Turquia, convertida em República, impôs um novo tratado aos Aliados, que foi assinado em Lausanne, em 1923. O país manteve Anatólia e os estreitos, mas perdeu todos os seus territórios árabes.

Na Mesopotâmia e na Palestina, os ingleses conseguiram derrotar o Império Otomano graças à ascensão das tribos árabes, às quais prometeram independência. O trabalho de Lawrence da Arábia, um arqueólogo britânico que se tornou um elo com os árabes, foi decisivo.Mas os britânicos e os franceses já haviam dividido o Oriente Médio em segredo em maio de 1916, com a assinatura dos acordos Sykes-Picot: Líbano e Síria para a França, Jordânia e Iraque para o Reino Unido.

Essa divisão gerou muita frustração entre os árabes.A famosa “Declaração de Balfour” (1917) complicou ainda mais a situação. Ao apoiar “o estabelecimento na Palestina de um lar nacional para o povo judeu”, o então ministro das Relações Exteriores britânico, Arthur Balfour, lançou as bases para a criação, 30 anos depois, do Estado de Israel. Plantavam-se as sementes de um conflito ainda não resolvido na região até hoje.

JAZZ PARA APLACAR AS DORES

Os europeus nunca tinham ouvido nada parecido. O jazz foi uma novidade que acompanhou a entrada dos americanos na Primeira Guerra Mundial. Geralmente se associa a introdução desta música sincopada, então conhecida como “ragtime”, à chegada à França, em dezembro de 1917, do 369º regimento de infantaria, ao que pertenciam os Harlem Hellfighters, uma orquestra militar formada por músicos negros dirigida pelo tenente James Reese Europe.

— Este acontecimento teve uma grande impacto. Tocavam em cada estação em que paravam uma coisa que a maioria dos franceses ainda não tinha ouvido — destaca o compositor e musicólogo Laurent Cugny. — Outro aspecto novo era que os que tocavam eram negros. A
lém do racismo, era uma raridade de peso para a época.

Os Harlem Hellfighters fizeram o primeiro concerto oficial de jazz na Europa em 12 de fevereiro de 1918, na cidade francesa de Nantes. Mas Bertrand Dicale, especialista em música popular, lembra que em 1912 e 1913 começaram a chegar um conjunto de músicas em forma de partituras procedentes de Londres, graças a um acordo entre editores britânicos e franceses. Eram as primeiras amostras do que mais tarde seria chamado de jazz. A nova corrente alcançou os compositores de música erudita, como Erik Satie, Igor Stravinski, Maurice Ravel e Darius Milhaud.

— O que eles gostaram no jazz é seu ritmo, seu vigor, embora no fim das contas tenham perdido rapidamente o interesse — explica Cugny.

As estrelas daquele tempo se contagiam com o vírus. É o caso de Maurice Chevalier, que descobre o ragtime em partituras de 1914, quando está destacado em um regimento de infantaria. “Les Jazz Bands”, incluída em uma de suas primeiras gravações em 1920, foi a primeira canção francesa a mencionar o jazz.

A canção “Mon homme”, criada em 1920 por Maurice Yvain, compositor de Chevalier, reapareceu mais tarde como ‘My Man’ nos Estados Unidos, interpretada primeiro por Ella Fitzgerald e, depois, por Billie Holiday. Em Paris, as bandas de jazz começam a ganhar espaço nos cabarés então conhecidos como “Montmartre negro”.

— Durante essa época, as bandas americanas improvisam com músicos parisienses de orquestras e restaurantes. A influência do jazz aumenta, embora exista uma troca — diz o jornalista Bertrand Dicale.

Ainda mais importante, segundo Cugny, é que a Europa estava se recuperando da Primeira Guerra Mundial.

A febre do jazz se estendeu também ao resto da Europa, que as orquestras militares americanas optaram por explorar antes de voltar aos EUA. Foram aos países do Leste. O saxofonista Sydney Bechet se apresentou em 1926 na Rússia. O jazz também se popularizou na Alemanha do pós-guerra, onde Charles Trenet descobriu o gênero aos 15 anos, quando vivia em Berlim com sua mãe artista. Ainda mais importante, segundo Cugny, é que a Europa estava se recuperando da Primeira Guerra Mundial.

— A percepção dos negros já não era a mesma. Jazz é uma palavra que faz sonhar. Está associada com a ideia de se divertir, de vida, de dinamismo. Está vinculada ao modernismo da época. Depois de quatro anos de massacre, as pessoas querem abrir as janelas e apreciar.

EFERVESCÊNCIA ARTÍSTICA PÓS-1918

O horror dos combates da Primeira Guerra Mundial provocou na arte uma renovação. Grupos de artistas abraçaram o sonho surrealista, a denúncia social e o retorno à pintura figurativa.

As vanguardas — Cubismo, Expressionismo e arte abstrata — estavam completamente formadas entre 1905 e 1914, antes do início da guerra. Mas entre 1917 e 1918, a “tristeza terrível” se reflete na expressão artística, “marcada por imagens congeladas, cores escuras”, explica o professor Peter Read, da Universidade de Kent.

— A civilização faliu. Os artistas realizam uma campanha de desmoralização para reinventar o mundo. Há interesse em Marx, para transformar o mundo, e em Rimbaud, para mudar a vida — acrescenta.

O front também separou muitos artistas que eram amigos. O pós-guerra criou novas configurações. Os debates eram intensos entre 1916 e 1918 nos cafés parisienses, centro da efervescência artística na época em que escritores como André Breton ou Louis Aragon abriram o caminho ao surrealismo.

Em toda a Europa, movimentos artísticos buscaram uma resposta ao trauma: a estética da máquina com o cubismo-realismo; as formas e cores puras com o movimento holandês De Stijl; a desapropriação das formas com o Bauhaus alemão; o construtivismo com seus elementos geométricos, especialmente na Rússia.

Nos Estados Unidos, as novas escolas foram importadas da Europa, como já acontecia durante a guerra. Primeiro chegaram a Nova York com artistas como Francis Picabia e Marcel Duchamp.

— Estou convencida de que Marcel Duchamp pensava nas trincheiras em 1917 quando concebeu seu famoso mictório, uma piada num momento em que há tantos homens mutilados, mesmo sexualmente — diz Annette Becker, professora da Universidade de Nanterre.

OS EUA E O MULTILATERALISMO

A Primeira Guerra Mundial abriu o caminho à emergência dos Estados Unidos como potência global quando foi às trincheiras na Europa. Um século depois do armistício de 11 de novembro de 1918, o debate sobre os EUA e o seu papel no mundo reaparece diante da chegada de um presidente cujo slogan “Estados Unidos primeiro” evoca os isolacionistas daqueles anos.

Nos anos imediatamente após o conflito, o presidente americano Woodrow Wilson liderou a Liga das Nações, criada após a Primeira Guerra Mundial. Mas Henry Cabot Lodge, então presidente do Comitê de Relações Exteriores do Senado, considerava a organização uma ameaça à soberania americana. O mesmo Congresso americano onde o presidente Wilson expôs seus “14 pontos” para a paz rejeitou depois a adesão dos Estados Unidos à Liga das Nações.

— O debate que chega com o fim da Primeira Guerra Mundial é: os interesses dos Estados Unidos são melhor atendidos com a incorporação em organizações internacionais como a Liga das Nações Ou os Estados Unidos ficarão melhores permanecendo à margem dessas organizações e perseguindo os seus interesses por conta própria? — diz Michael Neiberg, professor de História na Escola de Guerra do Exército americano.

Os ecos da disputa entre Wilson e Lodge podem ser ouvidos ainda hoje, enquanto o presidente Donald Trump mantém uma política externa de rechaço a instituições globais e acordos multilaterais de livre comércio. O republicano já anunciou a retirada americana (ou de fatou abandonou) o Acordo de Mudança Climática de Paris, o acordo nuclear com o Irã, o Conselho de Direitos Humanos da ONU e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

— Nunca entregaremos a soberania dos Estados Unidos a uma burocracia global”, declarou à Assembleia Geral da ONU no mês passado. — Os Estados Unidos é governado por americanos. Repudiamos a ideologia da globalização e abraçamos a doutrina do patriotismo.

Para Neiberg, “os argumentos de Trump são dos anos 1920”. A postura de Trump também representa o abandono do compromisso dos Estados Unidos com as regras da ordem internacional, a mesma que Washington ajudou a criar depois da Segunda Guerra Mundial.

O que os líderes americanos da Segunda Guerra Mundial aprenderam do período entre as duas guerras é que a ideia de que os Estados Unidos “poderiam ser mais seguros e mais prósperos se distanciando da Europa e do resto do mundo estava totalmente equivocada”, assinala James Lindsay, do Conselho das Relações Exteriores.

Os presidentes americanos, de Harry Truman a Barack Obama, podem ter tido diferenças sobre prioridades e estratégias, mas todos “falavam positivamente sobre as alianças, sobre a abertura dos mercados, a promoção da democracia e os direitos humanos”, diz Lindsay. Trump, por sua vez, “é profundamente cético do multilateralismo e deu as costas a esse mundo que os Estados Unidos forjou”, segundo ele, alertando sobre “um vazio político a nível geopolítico” que os EUA arriscam deixar:

— Podem acontecer duas coisas. A primeira é que alguém tente preenchê-lo. Agora mesmo os chineses estão tentando fazer isso. Outra possibilidade é que não haja líder e esta se torne uma época de grande competição geopolítica entre as grandes potências.(AFP)

Há cem anos acabava a primeira guerra mundial

Soldados na batalha de Somme, travada entre julho a novembro de 1916 e consideradas uma das maiores da Primeira Guerra Mundial

Capacete de Primeira Guerra Mundial exibido no Museu Nacional de História e Cultura Afro-americana da Instituição Smithsonian - PRESTON KERES / AFP

22.02.1997 - REPRODUCAO - SC - REPRODUCAO DE REVISTA. - O mictório de Marcel Duchamp

O mesmo Congresso americano onde o presidente Woodrow Wilson expôs seus ‘14 pontos’ para a paz rejeitou depois a adesão dos Estados Unidos à Liga das Nações -

Há cem anos acabava a primeira guerra mundial

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